NA TRILHA DO BLUES
Por
Charles E. Cobb Jr. Fotos de
William Albert Allard
Publicado na National Geographic, edição de abril de 1999
Com raízes no delta do Mississippi, o blues surgiu da música religiosa e das canções de trabalho, servindo de trilha sonora para a grande migração negra para o norte dos Estados Unidos.
Meu bisavô Samuel Reuben Kendrick nasceu escravo no estado americano do Alabama. Em 1888, porém, fundou uma comunidade agrícola, chamada Nova África, nos 65 hectares que adquiriu da ferrovia nas cercanias de Duncan, no Mississippi. Entre os problemas que enfrentou – enchentes, infestação de pragas, como o bicudo-do-algodoeiro, acúmulo de empréstimos bancários –, houve um incidente que o convenceu a mudar-se do Mississippi. Quando um meeiro da fazenda ao lado perguntou-lhe se podia viver e trabalhar num trecho de suas terras, Sam Kendrick não só concordou como ainda mandou uma carroça para que o homem e sua família fizessem a mudança. O gesto não foi muito bem-visto por um grupo de brancos. Liderados pelo dono da fazenda vizinha, eles armaram uma cilada para meu bisavô e o surraram com cabos de machado, responsabilizando-o por ter "roubado" um de seus trabalhadores.
Pouco após esse incidente, em um gélido dia de janeiro de 1909, Sam Kendrick decidiu consertar a pequena ponte de madeira sobre o lago na divisa de suas terras. É bem possível que seu espírito estivesse longe dali – talvez absorto nos planos de recomeçar a vida no Texas – pois deixou cair o martelo no lago. Teve de entrar na água gelada, mas conseguiu recuperar o martelo e retomou o trabalho. Naquela noite, porém, começou a sentir calafrios. Alguns dias depois, com 56 anos de idade, morreu de pneumonia.
Ai, o blues é uma dor que corrói
o velho coração,
Ai, o blues é uma terrível dor no velho coração,
Como a tuberculose, vai me consumindo
aos poucos.
– Robert Johnson
A expressão "having the blues" (estar tomado pela tristeza, literalmente "estar tomado pelo azul") remonta à Inglaterra do século 18, onde a melancolia era mais conhecida como o "demônio azul". Todavia, foram sofrimentos parecidos com os de Sam Kendrick, corriqueiros entre os negros após a Guerra de Secessão, que deram origem a esse novo e visceral estilo de música – o blues –, cujos temas são o trabalho estafante, o amor, a miséria e as dificuldades enfrentadas pelos negros libertos em um mundo que havia pouco livrara-se da escravidão.
Se tivesse vivido mais, meu bisavô teria participado de um dos maiores deslocamentos populacionais já ocorridos em tempos de paz nos Estados Unidos. Entre 1915 e 1970, mais de 5 milhões de afro-americanos abandonaram todas as partes e cantos do sul rural, a maioria deles seguindo para as cidades do norte, que então passavam por explosivo processo de crescimento. O filho mais velho de Sam Kendrick, meu avô Swan, acabou radicando-se em Washington, D.C., onde nascemos tanto a minha mãe como eu próprio. Outros parentes seguiram o batido caminho desde o Mississippi até Memphis, onde o blues contribuiu para o surgimento do rock’n’roll. Essa "trilha do blues" desembocava em Chicago – meca dos blueseiros e de outros migrantes.
Um deles, Willie Dixon, que se mudou para Chicago em 1936, definiu o blues como parte das "coisas da vida". Dixon foi letrista, poeta e filósofo do blues. Por mais de meio século, lutou para que este fosse reconhecido como uma das raízes de toda a música americana. "Tudo o que existe sob o sol, tudo o que se arrasta, voa e nada gosta de música. Mas nada se compara ao blues, pois é o único tipo de música que, juntamente com o ritmo e a melodia, transmite sabedoria."
Todos os caminhos que partiam do sul trazem a marca do blues popular, mas nenhuma outra região estava mais estreitamente associada a essa música do que o delta do rio Mississippi. Essa imensa e fértil planície inundável – definida pelo Mississippi, mas cortada também pelos rios Yazoo, Tallahatchie e Big Sunflower – estende-se por 325 quilômetros desde Memphis, no Tennessee, até Vicksburg, no Mississippi. A terra escura do delta fumega sob o escaldante calor estival quando saio da rodovia 61 e tomo uma estradinha asfaltada que, na época de meu bisavô, era uma trilha de carroças. No toca-fitas do carro, ouço, a todo o volume, Me and the Devil Blues ("Eu e o Diabo do Blues"), de Robert Johnson, cuja voz soturna e guitarra desesperada parecem invocar os fantasmas do delta. Do alto de uma ponte metálica – sucessora daquela na qual trabalhou meu bisavô –, fito as águas turvas. Ali, bem no local em que chegou ao fim a vida dele, começo minha viagem pela memória e pelo blues.
Por volta da meia-noite, em um abafado sábado de agosto, Mama Rene desliza para a banqueta ao lado da minha no bar Do Drop Inn, à margem da rodovia 61 em Shelby, no Mississippi. "Não, querido, o blues não é só tristeza. É por isso que abri este lugar. É uma maneira de relembrar. O blues fala dos negros, do modo como vivemos, do modo como éramos tratados. De como sobrevivemos e estamos aqui."
Filha de lavrador, aos 63 anos de idade, Irene Walker – Mama Rene – ainda é uma atraente mulher. "O blues está desaparecendo entre os jovens negros", lamenta, balançando a cabeça. "Acham que é coisa de velho. Eles permitiram que o rap os afastasse de sua própria cultura, ao passo que os jovens brancos estão se aproximando do blues."
Junto ao bar, há uma área bem iluminada, com mesa de sinuca e máquinas de jogos eletrônicos. Mais além, vê-se um pequeno palco e uma pista de dança, ambos na escuridão, a não ser pelo fio de luzinhas azuis e verdes de Natal preso ao teto. Transpirando profusamente, de olhos fechados, o cantor principal entoa seu lamento: "Você já viu uma mulher chorar apenas de um olho só?" Seus versos melancólicos provocam intensos gritos de liberação entre a platéia dançante. "Ai, meu Deus!" "Ai, Senhor, fale comigo!" Balançando os braços e gingando o corpo, parecem estar cruzando um limiar, se não para uma vida melhor, pelo menos para um instante melhor.
Para mim, a cena toda me recorda as palavras do historiador do blues Worth Long. "Pouco importa onde é tocado, num clube ou no quintal das casas, o blues é música para ser dançada." Antes do blues, entoavam-se canções para marcar o ritmo do trabalho – enquanto se martelava os trilhos da ferrovia ou se plantava algodão. Em seguida, explicou-me Long, "a canção de trabalho passa a ser dançada, nos pátios e quintais das casas. Só depois a dança chegou aos clubes e bares".
Um ano depois, quando retorno ao bar de Mama Rene, ali encontro um disc-jóquei de rádio trabalhando. A todos os seus ouvintes, diz que está transmitindo ao vivo do Do Drop Inn, em Shelby. Noto também que há um número maior de jovens entre os freqüentadores. "Preciso ganhar a vida", suspira Mama Rene. "Estou vendo como trazer de volta minha noite de blues tal como era. Ainda vou descobrir uma maneira."
Os jovens negros ainda vão dançar em bares como o Do Drop, mas o blues já não significa tanto para eles, embora tenha inspirado o rap e outros tipos de música a que estão habituados. Como o blues surgiu da pobreza e da falta de perspectivas, para muitos negros americanos essa é uma lembrança desagradável. Além disso, muitas vezes as letras sensuais não ajudam muito. Na verdade, versos como "Assim que ela começa a fazer amor, até um cego começa a ver", de Sonny Boy Williamson, fizeram com que o blues fosse considerado por alguns como "música do demônio".
O blues do delta do Mississippi já foi chamado de "blues profundo". Músicos originários das plantações de algodão – homens e mulheres como Muddy Waters, Willie Foster, David "Honeyboy" Edwards, Memphis Minnie e Son House – tocavam e cantavam com uma força assombrosa. O próprio local parecia exigir isso. No verão, o delta é uma região de calor sufocante e intempestivas e furiosas tempestades com céus que parecem colocar os seres humanos em seus lugares. As longas fileiras de algodoeiros não proporcionam nenhum alívio na planície indistinta. Ali todos se sentem expostos e tudo o que querem é buscar refúgio, seja em um bar junto a uma garrafa de uísque, seja em uma igreja. Talvez até em ambos os locais. Tudo depende de ser sábado à noite ou domingo de manhã.
Poeta, professor universitário e especialista em música negra, meu amigo Sterling Plumpp, do Mississippi, lembrou-me de que afinal não há tanta diferença assim entre a música religiosa das igrejas e a música secular dos bares. "A primeira vez que ouvi blues foi durante as orações de meu avô", contou ele. "Tome conta de Seal, o cavalo adoentado. Mantenha longe o bicudo-do-algodoeiro. Dê mais ternura ao coração dos brancos de modo que dessa vez não nos enganem tanto."
Em Yazoo City, o reverendo Arnold "Gatemouth" Moore, de 87 anos, confirmou o vínculo entre blues e igreja. Perguntei a ele como havia sido sua transformação, de cantor de blues a pregador. "Depois que encontrei Jesus, tive apenas que mudar as letras. Ainda tenho a mesma voz, o mesmo registro, mas as palavras são diferentes. A música é a mesma, no entanto."
No final do século 19, por todo o sul dos Estados Unidos, as chamadas "leis Jim Crow" reforçaram a segregação racial, eliminando direitos conquistados após a Guerra de Secessão. Toques de recolher impediam que os negros andassem à noite pelas ruas. No Mississippi, a Constituição estadual de 1890 aboliu na prática o direito de voto dos negros.
Desde a última vez em que, há um quarto de século, percorri o delta, a região tornou-se quase totalmente irreconhecível. Hoje, no fim do século 20, já não mais se vê muita gente se esfalfando nos campos. Desapareceram as cabanas dos meeiros, antes encontradas por toda a parte e agora substituídas por bangalôs ajeitados e trailers, ocupados pelas famílias daqueles que operam os tratores, as colheitadeiras de algodão e outras máquinas que tomaram o lugar dos músculos humanos.
Em sonolentos vilarejos como Tutwiler, os que se lembram dos tempos passados não guardam a menor nostalgia. "A gente colhia o algodão dos brancos. Eles ficavam com a produção e em troca davam o que queriam", relembra Judge Davis Irving, o "J.D." de 69 anos.
O destino mais comum dos meeiros era ficarem presos a um ciclo interminável de dívidas. Metade do que produziam ia direto para o dono da terra. Para obter suprimentos ou alugar um barraco miserável, os meeiros endividavam-se junto ao dono da fazenda na entressafra. Esse empréstimo era chamado de "abastecimento". O pagamento da dívida era realizado no "acerto", após a colheita da safra de outono. No final, o meeiro recebia em dinheiro apenas o que restava após o "acerto". Quanto ao dono da fazenda, "ele ficava com os registros e determinava os valores", conta J.D. "Quem discordasse, não tinha outra saída senão ir embora e procurar outro lugar."
O blues lançou suas primeiras e mais profundas raízes nos campos cultivados pelos meeiros. Willie Foster, ainda em atividade aos 77 anos de idade (morto em 2001), é um dos últimos blueseiros que ainda se lembra de quando trabalhava no campo. "Um homem fica no meio do campo arando com uma mula e cantando ‘Ai, meu amor se foi. Logo eu mesmo vou partir’."
"Nasci com o blues", diz Foster, na casa dele, em Greenville, contando que sua mãe foi obrigada a dar à luz sobre uma saca de algodão, pois o capataz não lhe deu uma folga para ter o filho. Foster aprendeu sozinho a tocar gaita ("Custava 25 centavos na drogaria Rexall, em Leland"). Com ela, imitava o pio das aves, assim como o apito e o ruído dos trens. "Quando fiz 17 anos, disse: ‘Mãe, já estou crescido. Já aprendi tudo sobre o delta e queria muito conhecer Chicago’ ." Sem um tostão no bolso, Foster partiu a pé de sua casa e, arrumando trabalhos temporários ao longo do caminho, chegou afinal a Chicago.
Não apenas todo blueseiro tem uma história de fuga das plantações: todos também têm uma história de aprendizagem associada a essa experiência. Em 1931, David "Honeyboy" Edwards, hoje com 84 anos, pulou num trem de carga que seguia para Memphis, levando um violão emprestado por seu cunhado.
No entanto, teve de voltar para casa alguns meses depois. "A música ainda não havia me adotado", disse ele. Uma noite, porém, conheceu Big Joe Williams, um blueseiro famoso, que perguntou a Edwards se ele era capaz de tocar o violão que estava carregando. "Dedilhei alguma coisa e ele disse: ‘Se quiser, eu ensino você a tocar’." Edwards então partiu de novo com Williams, "e nunca mais voltei".
Depois de viajar com Big Joe por um tempo, Honeyboy achou seu próprio caminho em Bay St. Louis, no Mississippi. Hoje, ele continua sendo um mestre do blues. Tendo ouvido um disco que ele gravou em 1941, fico assombrado, ao ouvi-lo em 1998, com o fato de sua voz e sua música continuarem tão fortes quanto no início. Ele é uma prova de que, no blues, o timbre vocal é tão importante quanto a letra. Tal como Willie Foster, Honeyboy é a história viva do blues, tendo conhecido todos os principais blueseiros, desde Charley Patton e Robert Johnson até Muddy Waters e Little Walter. Quando lhe perguntei sobre Robert Johnson, ele sorriu por um instante, como se seu espírito tivesse voado para o passado. "Mulheres e uísque, era disso que ele gostava de verdade."
Pessoal, é preciso que haja alguma
mudança por aqui;
Não estou brincando, não, isto é uma
das coisas da vida...
Vou saltar no lombo de uma mula velha e
partir, pouco me importa onde vou parar.
– Mercy Dee Walton
A grande diferença entre o sistema da escravidão e o de meação, mais bem explicitada por blueseiros como Honeyboy Edwards, era a relativa liberdade de movimento: de uma plantação para outra, do campo para a fábrica. A mudança constante é um tema comum no blues, um refrão que na verdade é uma senha para uma vida livre e repleta de novas oportunidades.
No final do século 19, dezenas de milhares de afro-americanos já haviam abandonado o sul, alguns participando da corrida às novas fronteiras agrícolas em Kansas e Oklahoma, outros seguindo para as cidades do norte, onde parecia haver mais oportunidades e menos opressão. Porém, foi com a eclosão da Primeira Guerra Mundial, e o conseqüente aumento da produção no norte industrializado, que teve início o verdadeiro êxodo do delta – e de todo o sul.
Em 1917, Honeyboy ainda não completara dois anos quando o jornal mais lido pelos negros americanos, o Chicago Defender, publicou o seguinte anúncio: "O Defender recomenda a todos que venham para o norte. Há muitas oportunidades para homens sérios, sóbrios e diligentes. Há trabalho para todo mundo. Já para aqueles a quem aborrece o trabalho, estão abertas as portas dos cárceres. Após um mês de trabalho forçado, você saberá muito bem o valor de um emprego honesto. Qualquer outra região neste país de Deus é melhor do que as terras sulinas [...] Não se iluda com a conversa dos brancos do sul. Venha juntar-se às fileiras dos homens livres".
Em 1917, quando os Estados Unidos entraram na Primeira Guerra, dos 10 milhões de negros que viviam no país, 80% estavam no sul. Havia muito, os movimentados frigoríficos, olarias e siderúrgicas de Chicago vinham atraindo imigrantes europeus, mas a eclosão da guerra interrompeu esse fluxo de mão-de-obra. Ao mesmo tempo, os operários brancos americanos foram convocados para lutar na Europa, agravando a demanda por mão-de-obra em um período de expansão industrial. Portanto, os trabalhadores originários do sul eram muito bem-vindos. Esse deslocamento demográfico oriundo dos estados sulinos somente seria interrompido na Grande Depressão da década de 1930: mesmo entre 1940 e 1970, esse movimento migratório superou 1 milhão de pessoas por década.
Em 1918, uma passagem de Nova Orleans a Chicago custava cerca de 20 dólares – quase o mesmo que o salário mensal em algumas fazendas. Muita gente vendia todas as suas coisas – freqüentemente com prejuízo – e seguia aos poucos para o norte, trabalhando pelos vilarejos do caminho e economizando o suficiente para avançar pouco a pouco. Às vezes as famílias se dividiam.
A pregação militante do Chicago Defender ressaltava o contraste entre os linchamentos e a opressão racial no sul e a vida próspera e livre em Chicago. "O jornal circulava de mão em mão até se desmanchar", comentou um leitor. Aqueles que voltavam para casa em visita traziam presentes, exibiam notas de dinheiro e não cessavam de falar sobre a boa vida na cidade grande. Nas plantações de algodão, nas esquinas, nas igrejas, nas barbearias e nos bares, só se falava da "terra prometida", do fabuloso norte. Como notou alguém em carta enviada de Chicago: "Meus filhos estão na mesma escola dos brancos e não preciso me humilhar diante de ninguém".
Para aqueles que abandonavam o delta, a cidade portuária de Memphis, no rio Mississippi, era a primeira escala importante. Linhas ferroviárias de todo o sul convergiam para Memphis, onde os passageiros tomavam a ferrovia Illinois Central com destino a Chicago. Hoje, quem caminhar por alguns quarteirões a nordeste da antiga estação de trens, passando por uma área decadente com calçadas quebradas e tomadas pela vegetação, irá chegar à rua Beale, o centro da Memphis negra.
"Descobri que a rua Beale era, por si própria, toda uma cidade", escreve B.B. "Blues Boy" King, em sua autobiografia. Com 73 anos, B.B. King ainda viaja com sua velha companheira, a guitarra Lucille, os dois apresentando-se quase 300 dias por ano. Para King, que nasceu em uma fazenda próxima de Itta Bena, no Mississippi, e desembarcou em Memphis pela primeira vez em 1945, a rua Beale "mais parecia o céu... Ali havia três cinemas enormes, cafés, hotéis, casa de penhor – eu nunca vira antes uma casa de penhor –, lojas que vendiam de tudo e músicos por todos os lados. Toda a confiança que eu conquistara, tocando aos domingos em vilarejos pelo delta, desapareceu de um momento para o outro".
Um músico podia tocar na rua em troca de moedas ou, se tivesse sorte, em um teatro ou clube. Tanto o blues como o jazz invadiram Memphis, um tipo de música reforçando o outro. Nos anos 50, B.B. King foi um dos pioneiros na incorporação ao blues de elementos do spiritual e do jazz. "À medida que as pessoas se movimentavam rio acima e rio abaixo, elas introduziam na música aquilo que encontravam nas duas pontas do rio", ensina Worth Long, historiador do blues.
Em Memphis, W.C. Handy, que percorria o sul com seus músicos desde a década de 1890, compôs em 1909 aquela que se considera a primeira canção de blues publicada. Mais tarde ele contaria que se inspirou em uma melodia ouvida em 1903, quando esperava o trem em Tutwiler, no Mississippi. Handy ficou surpreso ao ouvir um homem que "dedilhava um violão ao meu lado. Ele encostava a lâmina de uma faca nas cordas do violão e, com isso, produzia um efeito inesquecível". A música composta por Handy, Mr. Crump, era uma canção de propaganda política, para a campanha de Edward H. "Boss" Crump, o poderoso prefeito de Memphis.
Atualmente, a rua Beale está sempre lotada de turistas que freqüentam seus clubes de blues. É impossível escapar das lanchonetes e das lojas de lembranças. Já o prédio do Monarch Saloon, um dos bares prediletos de Handy, está desocupado. E o elegante teatro Palace, que teve importante papel no lançamento da carreira de B.B. King e de outros músicos, foi demolido.
Hoje com 71 anos, A.J. Burnett tinha apenas 13 quando começou a dançar no Palace, durante a década de 1940, como uma das "Vampin’ Babies". Alta, ela ainda é capaz de se mover com graça e rapidez. "O que hoje se faz em Las Vegas nós fazíamos aqui há 50 anos", diz ela, segurando minha mão enquanto descemos a rua Beale. Na época dela, a rua era tomada pelo jazz e pelo blues, com homens de ternos elegantes e mulheres belíssimas. Por toda a parte, ouvia-se música em meio à movimentação. "Pessoas decentes não freqüentavam os bares onde se tocava blues", conta ela, manifestando desprezo pela atual música comercial.
A escala seguinte após Memphis era a cidade de Cairo, em Illinois, na metade do caminho até Chicago. Como me dissera Judge Irving em Tutwiler, era em Cairo que tinha início o norte. "Os ônibus eram divididos por uma cortina escura – os brancos sentavam na frente, nós no fundo. Mas, quando chegávamos a Cairo, eles tiravam a cortina."
Uma Chicago negra, dura, às vezes sombria, mas bem menos autodestrutiva, esperava por Elnora Jones em 1945, quando saltou do trem que a trouxera do Mississippi. Uma esguia senhora de 79 anos que sorri com facilidade, ela acabava de se mudar para um apartamento novo nas proximidades do lago Michigan quando a visitei. "Veja onde cheguei!", exclamou ela. "Era filha de um lavrador e agora tenho ar-condicionado, vista para o lago e um repórter me entrevistando. Não venha me dizer que é possível impedir o avanço de uma mulher honesta."
A mãe dela mudara-se antes para Chicago. Elnora a seguiu depois, levando seus três filhos e o irmão caçula, Eddie Campbell. Eddie, que foi o diretor da banda do lendário músico de blues Jimmy Reed, agora é ele próprio um respeitado blueseiro. Eles tomaram o trem do Illinois Central em Coahoma, um vilarejo no delta.
Elnora ainda treme de excitação ao descrever o percurso de bonde desde a estação ferroviária: foi ali que ela descobriu que as regras de etiqueta racial do Mississippi não tinham a menor importância em Chicago. "O bonde estava lotado e eu me segurava na barra quando subiu um homem branco. A mão dele roçou a minha. Soltei a mão da barra e logo a coloquei de volta. Uau!"
Claro que também houve ocasiões de arrependimento. Havia gente demais em Chicago. E uma nítida fronteira racial separava os bairros. As condições de vida não eram nada fáceis.
Entre 1910 e 1930, a população negra de Chicago quintuplicou, chegando a um quarto de milhão de pessoas. Os bairros operários – a "zona negra" – estendiam-se em direção ao sul desde o centro da cidade. Ali viviam os metalúrgicos, os empregados dos frigoríficos, os porteiros e as empregadas domésticas como Elnora, que se enche de orgulho ao me contar que, embora ela própria tivesse estudado apenas até o terceiro ano primário, seus três filhos formaram-se na universidade.
Esses trabalhadores, que ganhavam pouco mais que o mínimo necessário para sobreviver, foram as pessoas que viabilizaram o sucesso de músicos como McKinley Morganfield, mais conhecido como Muddy Waters ("Águas Lamacentas", pois quando pequeno gostava de brincar na lama). Em 1943, ele saltou de um trem vindo do Mississippi, carregando apenas um violão e uma muda de roupas. Embora tenha conseguido um emprego que pagava 45 dólares por semana como carregador em uma fábrica de papel, ele preferiu sair tocando em festas e em clubes, como o Chicken Shack, na região oeste de Chicago.
Com tantos músicos radicando-se em Chicago, onde trocavam idéias e influências, a cidade foi pioneira na transição entre a folclórica música acústica do sul rural e um som urbano, amplificado e mais requintado. A rua Maxwell, na região oeste da cidade, onde viviam os mais pobres dentre os pobres, tornava-se nos fins de semana um fervilhante bazar com 1 quilômetro e meio de extensão. Músicos tocavam nas esquinas e, nas calçadas, amplificadores eram alimentados por fios elétricos vindos dos apartamentos. De vez em quando, Muddy Waters tocava na rua Maxwell, mas, como revelou a um repórter: "Eu não gostava de tocar ao ar livre, sob sol e chuva, e também não gostava de passar o chapéu".
Juntamente com a explosão da música em Chicago, houve a explosão de atividades em comunidades como Bronzeville, uma vigorosa vizinhança que se estendia por cerca de 40 quarteirões desde a rua 26 em direção ao sul da cidade. Hoje a melancolia permeia grande parte dessa área, mas não se escuta ali muita música. No final de uma tarde, converso com Gerri Oliver no bar da Palm Tavern, na rua 47. "O sonho de minha família era que eu fosse gerente de funerária", conta Gerri, outra nativa do Mississippi que se mudou para Chicago na década de 1940. Ela trabalhou como caixa, cabeleireira e manicure até que, em 1956, ela e o marido compraram a Palm Tavern.
Com seus garçons de luva e toalhas brancas engomadas, o estabelecimento logo se tornou o ponto de encontro de músicos locais e visitantes, que ali podiam comer e beber. Entre os freqüentadores, Gerri desfia uma longa lista que inclui Dizzy Gillespie, Count Basie e os Temptations. "E pensar que conheci toda essa gente hoje famosa", diz ela. "Na época nem dava muita importância a eles."
Quase todos os clubes e teatros que contribuíam para a animação de Bronzeville já não existem mais, e a própria Palm Tavern deixou de servir comida. "Os traficantes me disseram que, se eu não deixasse que vendessem drogas, ninguém mais entraria aqui. Bem, eu não vendo crack e pode ter certeza que não estou ficando rica com esses martinis", suspira Gerri. Mas esse lugar é a vida dela e, por isso, continua a resistir.
Da Palm Tavern, a caminhada é pequena até o Checkerboard Lounge, na rua 43, onde encontro Sterling Plumpp, poeta e professor do Mississippi. O Checkerboard é um dos poucos lugares na zona sul de Chicago onde ainda é possível ouvir conjuntos de blues ao vivo. Embora os negros da cidade tenham sido fundamentais na difusão do blues, a música ao vivo mudou-se quase toda para os clubes elegantes da zona norte, onde os músicos ganham mais e onde os freqüentadores, em sua maioria brancos, sentem-se mais seguros.
"Para quem não vive aqui, a região parece perigosa", comenta o barman quando menciono as ruas vazias. "E, na verdade, às vezes ela é mesmo."
Parte dos problemas atuais deve-se à migração da classe média negra para os subúrbios. Quando, na década de 1970, ruiu a segregação residencial nas cidades do norte, os negros começaram a deixar os centros urbanos, tal como, em uma geração anterior, haviam abandonado a zona rural dos estados sulinos. "Coisas da vida", assim Willie Dixon definiu o blues. Bem, as coisas mudam; o blues é simplesmente o modo como sentimos a vida passar.
"Há mais continuidade no blues, como expressão da vida cotidiana, do que em qualquer outra coisa neste planeta", diz Sterling.
Essa continuidade permite que eu próprio me reconheça no blues. De modo não muito diverso dos atuais adolescentes, minha geração afastou-se do blues, considerando-o antiquado e passivo demais. Todavia, agora em Chicago, no fim de minha jornada, volto os olhos para o caminho que percorri na trilha do blues e sou grato a todos os que a percorreram antes de mim. Meu caminho tornou-se bem mais fácil graças à música que fizeram e aos desafios que superaram.
Volto a me concentrar na música. No palco do Checkerboard está John Primer. Com 52 anos, ele pertence a uma geração mais jovem que a de músicos como Honeyboy Edwards, Willie Foster e Gatemouth Moore.
A voz de Palmer possui certa aspereza. Tenho a impressão de que está tentando infundir vida às deprimentes ruas lá fora. Sweet Home Chicago é o que está cantando, com uma dose de ironia que não esconde seu ardoroso amor pela cidade e pelo blues.